Por Metro Curitiba/Rafael Neves

Sancionada no final de junho, uma lei que proíbe a caça no estado de São Paulo está sendo questionada por duas ações no STF (Supremo Tribunal Federal). O protagonista da discussão pode ultrapassar 1,2m de altura, 2m de comprimento e pesar mais de 200 kg. Embora parte dos brasileiros o veja apenas como o prato predileto do guerreiro gaulês Obelix, da série de quadrinhos Asterix, o javali é pivô de uma disputa ambiental que se acirrou nos últimos anos. 

Exótico no ecossistema nacional, o animal é alvo de preocupação por atacar não apenas lavouras, mas também nascentes de rios e fauna e flora nativas. Fotos e vídeos da destruição – cujas vítimas recorrentes são roças de milho e cana, animais silvestres e até veículos capotados em rodovias  – têm sido compartilhados por entusiastas da caça ao suíno, especialmente quando o debate volta à tona. No final do mês passado, por exemplo, o presidenciável Jair Bolsonaro (PSL-RJ) foi às redes sociais apoiar a causa anti-javali e refutar as “fake news” de que também defenderia a caça de outras espécies.

Ambientalistas, ruralistas, caçadores e o Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis) concordam que o javali precisa ter a expansão contida. Mas o consenso acaba aí. Entidades rurais e de caça querem que a população possa, por si própria, fazer o abate. Defensores da lei paulista (16.784/18) afirmam, contudo, que a liberação abre portas para maus-tratos aos suínos e a outras espécies – argumento que também se vale de vídeos na internet, em que javalis são mutilados por cães usados nas caçadas, ou vice-versa. Também alegam que não há provas de que a caça seja um método eficaz de controle.

Metro Jornal consultou três representantes de cada ponta da discussão, além do Ibama e dos autores da legislação em pauta no STF. Há vários argumentos antagônicos, mas o debate sofre com a falta de informações. Apesar de reconhecer o problema há mais de 20 anos, o Ibama não sabe quantos javalis vivem no Brasil e não há confirmação se a população cresceu ou diminuiu desde que seu controle foi permitido, inclusive pela caça, em 2013.

Histórico

O javali está presente em todos os estados das regiões Sul, Sudeste e Centro-Oeste, além da Bahia e do Tocantins. A data de chegada do animal ao país é incerta, mas no início dos anos 1990 sua importação foi incentivada como uma opção na suinocultura. A carne era anunciada como mais saudável e menos gordurosa que a do porco, mas nunca emplacou no mercado. Em pouco tempo alguns criadores começaram a soltar as varas – coletivo da espécie – na natureza.

A “paternidade” do problema é alvo de discordância: enquanto os ambientalistas culpam os suinocultores, os caçadores responsabilizam as autoridades. “O Ibama é o pai e a mãe do javali. Autorizou a vinda de um animal com histórico de desequilibrar os ecossistemas. E depois que o estrago estava feito, criou dificuldade para que as pessoas se desfizessem desses planteis”, afirma Daniel Terra, presidente da ANCC (Associação Nacional de Caça e Conservação).

“Chegamos aonde chagamos porque os produtores foram negligentes”, rebate a médica veterinária Vânia Nunes, diretora técnica da ONG Fórum Animal. “Quiseram investir na produção de uma carne exótica e, quando ela não se mostrou viável economicamente, soltaram os animais de forma irresponsável”, afirma. Um técnico do Ibama ouvido pelo Metro Jornal afirma que o órgão sofre pressão quando investidores querem importar uma nova espécie, e é acusado de atuar contra a economia do país quando não libera a entrada dos animais.

Foi em 1995 que o Ibama tentou, pela primeira vez, dar à população a autonomia para controlar os javalis. A permissão foi concedida em algumas cidades do Rio Grande do Sul, em caráter experimental. Após idas e vindas na regulação, o órgão autoriza desde 2013 que qualquer pessoa possa se credenciar para abater o animal. Em janeiro deste ano, havia 31,1 mil cadastrados para fazer o manejo.

A briga atual 

A caça profissional é proibida no Brasil desde 1967. Mas há exceções para animais “nocivos à agricultura ou à saúde pública”, e a prática é reconhecida, enquanto esporte, nas condições específicas em que é liberada. Sancionada no final de junho, a Lei 16.784/18 de São Paulo – de autoria do deputado Roberto Tripoli (PV) – reforça o veto à caça e proíbe que o combate a espécies invasoras seja feita por particulares, como permite o Ibama.

Duas ADI (Ação Direta de Inconstitucionalidade) correm no STF contra a legislação. Uma é do PTB (Partido Trabalhista Brasileiro) e a outra da SRB (Sociedade Rural Brasileira). “Nós não defendemos a caça por esporte, e sim por controle. Mas isso tem que ser feito por agentes privados”, diz João Fernandes Adrien, diretor da SRB.

Segundo Adrien, a entidade está satisfeita com a atual norma do Ibama. Os caçadores, no entanto, são contrários à regulação federal que, na visão deles, deveria ser mínima. “Cada vez que eu burocratizo e dificulto o controle, deixo o problema crescer”, reclama Terra, da ANCC. A associação diz ter cerca de 700 caçadores capacitados.

“Para o pessoal do campo, o javali é uma praga como uma barata ou um rato. Já pensou ter que se registrar pra ser um matador de barata? Não faz sentido”, argumenta Rafael Salerno, engenheiro agrônomo de Montes Claros (MG). Criador do aplicativo “Aqui tem Javali” – no qual os usuários indicam onde encontraram o animal e trocam informações técnicas sobre o controle –, Salerno diz prestar consultoria a agricultores rurais que lidam com a questão.

A burocracia, segundo ele, é a maior pedra no sapato dos clientes. Para poder abater javalis basta fazer um cadastro, mas a prestação de contas é rudimentar: como o sistema eletrônico prometido em 2013 ainda não saiu do papel, os caçadores que seguem a norma à risca (a minoria, conforme o Ibama) precisam entregar relatórios trimestrais pelo correio ou pessoalmente, em uma unidade do órgão que pode estar a centenas de quilômetros.

Caçadores ouvidos pelo Metro Jornal alegam terem sido multados injustamente. O Ibama afirma que a norma “não é burocrática, nem há excesso de restrições quanto aos métodos de manejo”, e que é preciso ter o mínimo de rigor na vigilância. “A maioria dos caçadores deliberadamente não fornece as informações exigidas pela legislação ou as entrega de forma incompleta ou imprecisa, o que dificulta a realização de uma fiscalização adequada”, diz o órgão.

Ambientalistas afirmam que já é difícil coibir abusos com a regra atual, e que a desregulamentação só faria piorar o problema. “Mesmo que uma entidade se comprometa a fazer a caça de forma ‘ética’, é muita inocência a gente acreditar na boa conduta de terceiros executando essa atividade”, avalia João Vasconcellos de Almeida, gerente da WAP (World Animal Protection Brasil).

A veterinária Cristina Harumi, da Associação Mata Ciliar, afirma que o número de animais atendidos pelo Cras (Centro de Reabilitação de Animais Silvestre) em que ela atua, na região de Jundiaí (SP), cresceu desde que o Ibama autorizou o abate de javalis em 2013. “O problema é que não vêm só javalis. Temos recebido mais capivaras, onças e veados feridos. Além de catetos e queixadas [duas espécies de porco-do-mato nativas do Brasil]. Recebi três onças em menos de um ano e só um javali”, diz a veterinária, que vê nisso um sinal claro. “É ingênuo achar que, com a liberação, só se vai caçar javalis e nada mais”. 

Diáspora

Ambientalistas desconfiam que os caçadores estejam espalhando os javalis pelo território brasileiro de propósito, para continuarem caçando. Um dos indícios seria a existência de animais em locais isolados como Ilhabela, no litoral paulista. “Javali não voa, nem nada, nem pega barco, nem avião (…) Então é óbvio que esses caçadores e fazendeiros estão pegando os filhotes, que são mais fáceis de manejar, e soltando em diversos locais para criar uma ideia de que existe um descontrole”, disse Vania Tuglio, promotora do MP-SP especializada em crimes ambientais, durante a CPI dos maus-tratos aos animais na Alesp (Assembleia Legilsativa de São Paulo), no ano passado.

Metro Jornal teve acesso a mensagens de um grupo de caçadores de javali no Facebook. Preocupado com a escasses de animais em sua região, um dos participantes fala sobre a necessidade de não se abater “porcas prenhas e em lactação, e leitões”, para garantir a perpetuação da espécie. “Fico pensando comigo: se estes javalis acabarem ou diminuírem, a ponto do Ibama encerrar este controle, teríamos que voltar a atirar somente em clube de tiro”, comenta outro membro do grupo.

Para a ANCC, a alegação de ‘sabotagem geográfica’ é descabida. “O javali é um porco como qualquer outro. E as pessoas, em algum momento, começaram a trocar, vender, levar e trazer, como faz com qualquer suíno. O javali sente o cio da porca a até 6 km de distância. Ele vai entrar no criadouro, vai lutar e matar o cachaço [macho reprodutor], vai cruzar com as porcas e se perpetuar”, explica Terra. “Essa teoria não tem embasamento técnico nenhum. Não tem embasamento científico nenhum. É puro achismo”, critica.

Futuro

Na esteira da discussão no STF, a Secretaria de Meio Ambiente de São Paulo emitiu, na última sexta, uma resolução que permite e regula o manejo de javalis por particulares. Isso fere a lei recém-aprovada no estado, segundo seu autor, o deputado Roberto Tripoli (PV). Consultado, o gabiente do parlamentar afirma que vai pedir explicações ao governo estadual.

A decisão do Executivo paulista foi comemorada por caçadores, mas não aplacou os ânimos da SRB, que mantém sua ADI no Supremo.

 

Crédito foto: Luiz Guilherme de Sá/Ibama