Esclarecimentos sobre marco temporal, esbulho renitente e a importância de se manter o que foi decidido pelo STF ao julgar o caso Raposa – Serra do Sol
Na última quinta-feira (26.08) iniciou-se o julgamento no Supremo Tribunal Federal (STF) da questão sobre a demarcação de terras indígenas, que continuará a ser julgada nesta quarta-feira (01.09). Trata-se de um caso em que a mais alta Corte da Justiça do país debaterá os conceitos de marco temporal e de ocupação tradicional de terras indígenas, que são questões centrais para o julgamento. Como houve reconhecimento de repercussão geral para este processo, o que ficar decidido ali servirá de parâmetro para todos as outras situações semelhantes.
Diante da extensa cobertura da mídia sobre assunto, a Sociedade Rural Brasileira (SRB) entende ser seu papel vir a público prestar esclarecimentos e informações, como forma de procurar evitar a propagação de notícias falsas e de meias verdades que, pela própria definição do termo, são também meias mentiras.
Muito se tem falado sobre a tese do marco temporal e da necessidade de nossa Suprema Corte rejeitá-la em nome da proteção aos indígenas e às terras tradicionalmente ocupadas por eles. Ocorre que o conceito de marco temporal não é uma “invenção recente” e tampouco foi criado por um ou outro setor econômico. Ele decorre da própria Constituição Federal de 1988, conforme a opinião dos mais importantes juristas brasileiros como Manoel Gonçalves Ferreira Filho, Tércio Sampaio Ferraz Júnior e os ex-Ministros do STF José Carlos Moreira Alves e Ilmar Galvão. Dentre muitos outros.
Em termos simples, a ideia de marco temporal significa que os indígenas somente podem ter demarcadas em seu favor as terras efetivamente ocupadas por eles quando da entrada em vigor da atual Constituição, em 05 de outubro de 1988. Em parecer levado ao processo pela SRB, o eminente Ministro Moreira Alves, uma das maiores autoridades sobre o assunto, escreveu que o verbo escolhido pelo constituinte “ao aludir às terras que os índios tradicionalmente OCUPAM” (no presente), significa justamente: “no momento de sua promulgação – e não que ocupavam ou tinham ocupado anteriormente”.
A inclusão dessa regra na Constituição serviu para oferecer um critério objetivo a todos aqueles que se deparam com áreas de ocupação indígena, como forma de pacificação social. Isso porque, sem critério objetivo, torna-se simplesmente impossível estabelecer quais são as terras indígenas e quais não são, até onde elas vão, a partir de que momento etc. Geram-se assim conflitos e prejuízos materiais e humanos a todos, inclusive às populações indígenas.
Outra fake news é a de que a tese do marco temporal legalizaria invasões e violência contra os povos indígenas cometidas antes da entrada em vigor da atual Constituição. Foi justamente para evitar isso que o Supremo Tribunal Federal, ao julgar um dos mais emblemáticos casos de sua história – a demarcação das terras Raposa e Serra do Sol, em Roraima –, estabeleceu outras dezenove condicionantes a serem analisadas em conjunto com o marco temporal. Dentre elas, destaca-se o conceito de “esbulho renitente”, hipótese em que não haverá a perda do caráter tradicional da posse das terras indígenas se identificada conflitualidade a revelar retirada violenta ou ilegal dos índios antes da CF/88.
A mensagem superficial propalada é de que essa prova do esbulho renitente seria de difícil comprovação, pois os índios não tinham como se defender judicialmente antes da CF/88, já que tutelados pela FUNAI. Tal argumento não faz qualquer sentido, pois o próprio caso Raposa – Serra do Sol é justamente um exemplo da aplicação do conceito de esbulho renitente, tendo em vista que os índios não estavam presentes em boa parte da área reivindicada como indígena, mas mesmo assim o STF reconheceu haver disputa anterior à CF/88, quando os não-índios foram reassentados naquela região.
Logo se vê que o emprego conjunto dos conceitos de marco temporal e esbulho renitente evita discussões infinitas de disputas por demarcações de terras, pois são importantes argumentos para os dois lados, tendo em vista que trazem ao debate uma questão objetiva (data da ocupação) e outra subjetiva (análise de atos ilegais e/ou violentos de desapossamento anteriores). Por outro lado, reabrir a discussão para possibilitar a análise secular da tomada das terras indígenas, com retrocesso a decretos e normas régias datadas do século XVII, como defendem alguns, é devolver a sociedade brasileira à insegurança jurídica e ao arbítrio, em evidente prejuízo ao setor do agronegócio.
Não custa lembrar que o resultado de eventual decisão a rever os parâmetros já fixados pelo próprio Supremo há mais de uma década levará produtores rurais que detêm suas terras de forma justa e legítima e que não participaram das atrocidades cometidas há séculos com os índios a ter de pagar sozinhos uma eventual dívida histórica de toda a sociedade. Afinal, a residência de cada brasileiro também foi, um dia, terra indígena.
Estamos, pois, diante de uma difícil questão a envolver, de um lado, uma suposta dívida histórica de toda nossa sociedade e a necessidade de preservação dos povos indígenas e suas áreas de ocupação tradicional. Sendo que, de outro, está a proteção ao direito de propriedade de terras rurais legitimamente adquiridas e que servem ao exercício da principal atividade econômica em nosso país. Retroceder ao ambiente de insegurança jurídica e altíssima conflituosidade que vigorava antes da fixação, pelo STF, da tese do marco temporal e de suas dezenove condicionantes certamente não é o caminho para solucioná-la. Daí porque a SRB se posiciona e tem atuado no sentido de se manter o que já foi decidido pelo STF, preservando-se assim o equilíbrio entre proteção aos indígenas e a produção rural, bem como a paz social.